Às 4h da madrugada, o calor de 42ºC e um monte de homens de pele escura, cabelos pretos lisos, corpos esqueléticos e olhos fixados em mim e na minha irmã eram um beliscão nos mostrando que estávamos, depois de muito tempo de ansiedade e preparação, na Índia.
Era um mês de setembro e a época das monções estava chegando ao fim. Sem nenhum telefone de contato ou reserva de hotel, Lise e eu esperamos o máximo que pudemos dentro do aeroporto, criando forças pra encarar o que estivesse no lado de fora nos esperando.
Eu havia feito uma pesquisa minuciosa sobre as religiões indianas, tínhamos nos encontrado com imigrantes dali na Europa e guardávamos uma lista de dicas de pessoas que já tinham visitado a Índia e nos diziam que, depois de termos pisado naquele país, sempre pensaríamos em voltar.
Mas nada disso foi suficiente pra evitar o choque que tivemos quando, já no caminho do aeroporto até Mumbai, a segunda cidade mais populosa do mundo, tivemos nossas visões violentadas pela quantidade estarrecedora de gente dormindo nas ruas e calçadas da periferia. Com a chegada da luz, vieram as vacas, as pessoas se lavando nas calçadas com a água que escorria pelas valas das vias públicas, os carros, os rikshas, as vacas, as buzinas, os pés descalços, os gritos, os cheiros, a miséria, a piedade, a raiva e tudo que era escancarado à luz do sol sarcástico.
Um dia na maior cidade indiana foi suficiente pra decidirmos correr pra longe dali. Por isso, na manhã seguinte, Lise e eu pegamos um trem com destino a Vadodara, capital de Gujarat, mas o pesadelo não acabou. Com o passar dos dias, só nos convencíamos mais de que não nos adaptaríamos àquele lugar e nos irritávamos com todas aquelas pessoas que haviam nos dito o quanto a Índia era maravilhosa.
No entanto, não há nada melhor o tempo pra deixar a vida dar suas voltas. Com a passagem de volta pra dali a quase três meses, depois de uma semana, decidimos que já era hora de nos molharmos naquela tempestade. Conhecemos um indiano aqui e ali, ousamos, perguntamos, experimentamos e rimos mais, dormimos, reclamamos e sofremos menos. Seguindo dicas dos próprios indianos, fomos subindo pelo mapa em direção ao deserto do Rajastão e encontrando um país diferente, cada vez mais tranqüilo, amigável e turístico.
Em algumas semanas, já estávamos habituados ao dia-a-dia dos hindus, vacinados contra os golpistas oportunistas e os vendedores e pedintes insistentes e com o estômago fortalecido pra encarar os pratos indianos. Pelo menos foi o que eu pensei, até provar, na segunda semana no país, meu último táli, um prato típico de lá. Minha irmã insistiu em seguir experimentando a culinária indiana, enquanto eu passei a procurar restaurantes turísticos com comida ocidental. Semanas depois, Lise ficou dez dias doente na cama de um quartinho de hotel em Pushkar, um pequeno e aconchegante vilarejo próximo a Jaipur, ainda no Rajastão. Durante cinco dias, ela não conseguiu comer nada e até água era vomitada logo depois de bebida.
Com os comprimidos mágicos de um médico local, Lise se levantou da cama e voltou a comer, mas, dali em diante, passou a tomar só água mineral e a comer nos mesmos lugares que eu.
Com o corpo são, colocamos a mochila novamente nas costas e caímos na estrada em direção à capital Nova Dehli. Nunca vi um trânsito tão caótico na minha vida! É o único lugar do mundo onde, pra atravessar uma avenida, eu precisava de mais de 15 minutos! Além disso, a poluição dali é visível com a sujeira que sai quando se assoa o nariz!
De lá, seguimos viagem rumo a Sikkim, uma região do Himalaia com população predominantemente budista e muito pacata. Horas e horas de aperto e muito balanço em ônibus, dias de desconforto em trens, paradas injustificadas e saídas sem horário previsto pra chegadas... assim foram sempre as viagens que nos levavam de uma escola da vida indiana à outra.
Em Darjeeling, vi o monte Everest, atravessei trechos verdes e montanhosos durante dias de trekking, visitei diversos templos religiosos, senti muito frio, voltei a comer o mesmo que os habitantes locais e, depois de semanas, voltei a sentir o gostinho de carne!
A próxima grande parada foi Varanasi, à beira do rio Ganges. Ali, rodeados de novos amigos de todas as partes do mundo e de macacos peraltas que vivem soltos pela cidade, Lise e eu assistimos de perto a vários corpos sendo cremados em fogueiras de sândalo e jogados no rio. E vimos também, no mesmo rio, milhares de indianos tomando banho, lavando roupa, escovando os dentes, nadando e meditando... além de uma cabecinha ou uma mão boiando de vez em quando!
O destino seguinte foi Agra, a cidade horrível onde foi construído o belíssimo Taj Mahal. Inconformados com a discrepância entre os preços que um indiano e um turista estrangeiro pagam pra visitar o mausoléu (20 vezes mais), minha irmã e eu chegamos à cidade numa sexta-feira, o único dia em que ninguém precisa pagar pra ver a única das sete maravilhas que ainda está de pé.
Com Taj Mahal visto e fotografado, veio a dúvida: “Zanzamos mais um pouco pelo país, enfrentando as viagens cansativas e o calor e a confusão de outras cidades?” Por unanimidade, decidimos que não e voltamos à bela e tranqüila Pushkar, onde passamos os últimos 25 dias antes de voltarmos a contragosto a Mumbai, de onde pegaríamos o avião de volta a Frankfurt, na Alemanha.
Sem acesso a TV, rádio e internet, aprendemos muito sobre nós mesmos e o próximo observando e escutando histórias dos indianos que, com sua simplicidade e pobreza, nos davam preciosas lições de riqueza emotiva e espiritual. E, por falar em pobreza e riqueza, foi ali que, com o dinheiro de cada caricatura que eu fazia pros turistas, eu pagava duas noites no hotel!
Ao pensar em Pushkar, também vou me lembrar por um bom tempo das festas de casamento, do maravilhoso nascer do sol visto do alto das montanhas no deserto e do pôr do sol admirado na escadaria à beira do lago sagrado, ao som de tambores e do tabla indiano e em companhia de gente de todos os tipos e todas as partes do mundo...
Quando 86 dias se passaram e a Índia estava prestes a ficar pra trás, um filme como os de Bollywood passou rápido pela minha cabeça mostrando cenas de semanas que seriam decisivas na formação daquele jovem de 19 anos num homem. Com o avião no céu, a imensidão de um dos lugares mais excêntricos do planeta diminuía e diminuía... pra caber pra sempre nos nossos corações.
Era um mês de setembro e a época das monções estava chegando ao fim. Sem nenhum telefone de contato ou reserva de hotel, Lise e eu esperamos o máximo que pudemos dentro do aeroporto, criando forças pra encarar o que estivesse no lado de fora nos esperando.
Eu havia feito uma pesquisa minuciosa sobre as religiões indianas, tínhamos nos encontrado com imigrantes dali na Europa e guardávamos uma lista de dicas de pessoas que já tinham visitado a Índia e nos diziam que, depois de termos pisado naquele país, sempre pensaríamos em voltar.
Mas nada disso foi suficiente pra evitar o choque que tivemos quando, já no caminho do aeroporto até Mumbai, a segunda cidade mais populosa do mundo, tivemos nossas visões violentadas pela quantidade estarrecedora de gente dormindo nas ruas e calçadas da periferia. Com a chegada da luz, vieram as vacas, as pessoas se lavando nas calçadas com a água que escorria pelas valas das vias públicas, os carros, os rikshas, as vacas, as buzinas, os pés descalços, os gritos, os cheiros, a miséria, a piedade, a raiva e tudo que era escancarado à luz do sol sarcástico.
Um dia na maior cidade indiana foi suficiente pra decidirmos correr pra longe dali. Por isso, na manhã seguinte, Lise e eu pegamos um trem com destino a Vadodara, capital de Gujarat, mas o pesadelo não acabou. Com o passar dos dias, só nos convencíamos mais de que não nos adaptaríamos àquele lugar e nos irritávamos com todas aquelas pessoas que haviam nos dito o quanto a Índia era maravilhosa.
No entanto, não há nada melhor o tempo pra deixar a vida dar suas voltas. Com a passagem de volta pra dali a quase três meses, depois de uma semana, decidimos que já era hora de nos molharmos naquela tempestade. Conhecemos um indiano aqui e ali, ousamos, perguntamos, experimentamos e rimos mais, dormimos, reclamamos e sofremos menos. Seguindo dicas dos próprios indianos, fomos subindo pelo mapa em direção ao deserto do Rajastão e encontrando um país diferente, cada vez mais tranqüilo, amigável e turístico.
Em algumas semanas, já estávamos habituados ao dia-a-dia dos hindus, vacinados contra os golpistas oportunistas e os vendedores e pedintes insistentes e com o estômago fortalecido pra encarar os pratos indianos. Pelo menos foi o que eu pensei, até provar, na segunda semana no país, meu último táli, um prato típico de lá. Minha irmã insistiu em seguir experimentando a culinária indiana, enquanto eu passei a procurar restaurantes turísticos com comida ocidental. Semanas depois, Lise ficou dez dias doente na cama de um quartinho de hotel em Pushkar, um pequeno e aconchegante vilarejo próximo a Jaipur, ainda no Rajastão. Durante cinco dias, ela não conseguiu comer nada e até água era vomitada logo depois de bebida.
Com os comprimidos mágicos de um médico local, Lise se levantou da cama e voltou a comer, mas, dali em diante, passou a tomar só água mineral e a comer nos mesmos lugares que eu.
Com o corpo são, colocamos a mochila novamente nas costas e caímos na estrada em direção à capital Nova Dehli. Nunca vi um trânsito tão caótico na minha vida! É o único lugar do mundo onde, pra atravessar uma avenida, eu precisava de mais de 15 minutos! Além disso, a poluição dali é visível com a sujeira que sai quando se assoa o nariz!
De lá, seguimos viagem rumo a Sikkim, uma região do Himalaia com população predominantemente budista e muito pacata. Horas e horas de aperto e muito balanço em ônibus, dias de desconforto em trens, paradas injustificadas e saídas sem horário previsto pra chegadas... assim foram sempre as viagens que nos levavam de uma escola da vida indiana à outra.
Em Darjeeling, vi o monte Everest, atravessei trechos verdes e montanhosos durante dias de trekking, visitei diversos templos religiosos, senti muito frio, voltei a comer o mesmo que os habitantes locais e, depois de semanas, voltei a sentir o gostinho de carne!
A próxima grande parada foi Varanasi, à beira do rio Ganges. Ali, rodeados de novos amigos de todas as partes do mundo e de macacos peraltas que vivem soltos pela cidade, Lise e eu assistimos de perto a vários corpos sendo cremados em fogueiras de sândalo e jogados no rio. E vimos também, no mesmo rio, milhares de indianos tomando banho, lavando roupa, escovando os dentes, nadando e meditando... além de uma cabecinha ou uma mão boiando de vez em quando!
O destino seguinte foi Agra, a cidade horrível onde foi construído o belíssimo Taj Mahal. Inconformados com a discrepância entre os preços que um indiano e um turista estrangeiro pagam pra visitar o mausoléu (20 vezes mais), minha irmã e eu chegamos à cidade numa sexta-feira, o único dia em que ninguém precisa pagar pra ver a única das sete maravilhas que ainda está de pé.
Com Taj Mahal visto e fotografado, veio a dúvida: “Zanzamos mais um pouco pelo país, enfrentando as viagens cansativas e o calor e a confusão de outras cidades?” Por unanimidade, decidimos que não e voltamos à bela e tranqüila Pushkar, onde passamos os últimos 25 dias antes de voltarmos a contragosto a Mumbai, de onde pegaríamos o avião de volta a Frankfurt, na Alemanha.
Sem acesso a TV, rádio e internet, aprendemos muito sobre nós mesmos e o próximo observando e escutando histórias dos indianos que, com sua simplicidade e pobreza, nos davam preciosas lições de riqueza emotiva e espiritual. E, por falar em pobreza e riqueza, foi ali que, com o dinheiro de cada caricatura que eu fazia pros turistas, eu pagava duas noites no hotel!
Ao pensar em Pushkar, também vou me lembrar por um bom tempo das festas de casamento, do maravilhoso nascer do sol visto do alto das montanhas no deserto e do pôr do sol admirado na escadaria à beira do lago sagrado, ao som de tambores e do tabla indiano e em companhia de gente de todos os tipos e todas as partes do mundo...
Quando 86 dias se passaram e a Índia estava prestes a ficar pra trás, um filme como os de Bollywood passou rápido pela minha cabeça mostrando cenas de semanas que seriam decisivas na formação daquele jovem de 19 anos num homem. Com o avião no céu, a imensidão de um dos lugares mais excêntricos do planeta diminuía e diminuía... pra caber pra sempre nos nossos corações.
5 comments:
Que experiência fantástica!!!
MonÇões...
Ah, e assoar, não é?... (soar é o sino que faz!).
Ops! Obrigado! Está corrigido! :P
Elton, nao é estranho, agora em 2009 a globo lançar uma novela com o mesmo título do seu post??
Oi, Monica! Voce e` de Maringa ou de Berlim, eim?
Pois e`, parece que escolhi um titulo muito òbvio, voce nao acha? :)
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