17 October 2008

Os caminhos das Índias

Dando uma olhada num CD com textos antigos, encontrei este que escrevi no início do ano passado e que não devo ter publicado aqui ainda:

Os caminhos das Índias


Às 4h da madrugada, o calor de 42ºC e um monte de homens de pele escura, cabelos pretos lisos, corpos esqueléticos e olhos fixados em mim e na minha irmã eram um beliscão nos mostrando que estávamos, depois de muito tempo de ansiedade e preparação, de verdade na Índia.

Era um mês de setembro e a época das monsões estava chegando ao fim. Sem nenhum telefone de contato ou reserva de hotel, Lise e eu esperamos o máximo que pudemos dentro do aeroporto, criando forças pra encarar o que estivesse no lado de fora nos esperando.

Eu havia feito uma pesquisa minuciosa sobre as religiões daquele país, tínhamos nos encontrado com imigrantes dali na Europa e guardávamos uma lista de dicas de pessoas que já tinham visitado a Índia e nos diziam que, depois de termos pisado lá, sempre pensaríamos em voltar.

Mas nada disso foi suficiente pra evitar o choque que tivemos quando, já no caminho do aeroporto até Mumbai, uma das cidades mais populosas do mundo, tivemos nossas visões violentadas pela quantidade estarrecedora de gente dormindo nas ruas e calçadas da periferia.

Com a chegada da luz, vieram as vacas, as pessoas se lavando nas calçadas com a água escorrendo pelas valas das vias públicas, os carros, os rikshas, as vacas, as buzinas, os pés descalços, os gritos, os cheiros, a miséria, a piedade, a raiva e tudo que era escancarado à luz do sol sarcástico nos dando as boas-vindas.

Um dia na maior cidade indiana foi suficiente pra decidirmos correr pra longe dali. Por isso, na manhã seguinte, Lise e eu pegamos um trem com destino a Vadodara, capital de Gujarat, mas o pesadelo não acabou. Aliás, só começava quando me dei conta de que, ao pegar o trem, alguém já tinha roubado meu precioso saco de dormir comprado depois de meses de pesquisa na Alemanha.

Com o passar dos dias, só nos convencíamos mais de que não nos adaptaríamos àquele lugar e xingamos muito todas aquelas pessoas que haviam nos dito o quanto a Índia era maravilhosa.

No entanto, não há nada melhor o tempo pra deixar a vida dar suas voltas, como só quem vive bastante acredita. Com a passagem de volta pra dali a quase três meses, depois de uma semana, finalmente decidimos que já era hora de nos molharmos naquela tempestade.

Conhecemos um indiano aqui e ali, ousamos, perguntamos, experimentamos e rimos mais; dormimos, reclamamos e sofremos menos. Seguindo dicas dos próprios nativos, fomos subindo pelo mapa em direção ao deserto do Rajastão e encontrando um país diferente, cada vez mais tranqüilo, amigável e turístico.

Em algumas semanas, já estávamos habituados ao dia-a-dia dos hindus e vacinados contra os golpistas oportunistas e os vendedores e pedintes insistentes. Estávamos também com o estômago fortalecido pra encarar os pratos indianos. Pelo menos foi o que eu pensei, até provar, na segunda semana no país, meu último táli, um prato típico de lá.

Minha irmã insistiu em seguir experimentando a culinária local, enquanto passei a procurar restaurantes turísticos com comida ocidental. Semanas depois, Lise ficou dez dias doente na cama de um quartinho de hotel em Pushkar, um pequeno e aconchegante vilarejo próximo a Jaipur, ainda no Rajastão. Durante cinco dias, ela não conseguiu comer nada e até água era vomitada logo depois de bebida.

Com os comprimidos mágicos de um médico de lá, Lise se levantou da cama e voltou a comer, mas, dali em diante, passou a tomar só água mineral e a comer nos mesmos lugares que eu.

Com o corpo são, colocamos a mochila novamente nas costas e caímos na estrada em direção à capital Nova Dehli. Nunca vi um trânsito tão caótico na minha vida! É o único lugar do mundo onde, pra atravessar uma avenida, eu precisava de mais de 15 minutos! Além disso, a poluição é tremenda que se torna visível até com a sujeira que sai quando se soa o nariz!

Continuamos a viagem rumo a Sikkim, uma região do Himalaia com população predominantemente budista e pacata.

Horas e horas de aperto e muito balanço em ônibus, dias de desconforto em trens, paradas injustificadas e saídas sem horário previsto pra chegadas... assim foram sempre as viagens que nos levavam de uma escola da vida indiana à outra.

Em Darjeeling, vi o monte Everest, atravessei trechos verdes e montanhosos durante dias de trekking, visitei diversos templos religiosos, senti muito frio, voltei a comer o mesmo que os nativos e, depois de semanas, senti novamente o gostinho de carne!

A próxima grande parada foi Varanasi, à beira do rio Ganges. Ali, rodeados de novos amigos de todas as partes do mundo e de macacos peraltas que vivem soltos pela cidade, Lise e eu assistimos de perto a vários corpos sendo cremados em fogueiras de sândalo e jogados no rio. E vimos também, no mesmo rio, milhares de indianos tomando banho, lavando roupa, escovando os dentes, nadando e meditando... além de uma cabecinha ou uma mão boiando de vez em quando!

O destino seguinte foi Agra, a cidade horrível onde foi construído o belíssimo Taj Mahal. Inconformados com a discrepância entre os preços que um indiano e um turista estrangeiro pagam pra visitar o mausoléu (20 vezes mais), minha irmã e eu chegamos à cidade numa sexta-feira, o único dia em que ninguém precisa pagar pra ver a única das sete maravilhas que ainda está de pé.

Pulando os detalhes sobre o bando de pilantras que vivem de golpes aplicados em turistas naquele lugar...

... Com Taj Mahal visto e fotografado, veio a dúvida: “Zanzamos mais um pouco pelo país, enfrentando as viagens cansativas e o calor e a confusão de outras cidades?” Provando que ainda estávamos relativamente sãos, decidimos que não e voltamos à bela e tranqüila Pushkar. Passamos os últimos 25 dias ali antes de voltarmos a contragosto a Mumbai, de onde pegaríamos o avião de volta a Frankfurt, na Alemanha.

Sem acesso a TV, rádio e internet, aprendemos muito sobre nós mesmos e o próximo observando e escutando histórias das pessoas que, com sua simplicidade e pobreza, nos davam preciosas lições de riqueza emotiva e espiritual. E, por falar em pobreza e riqueza, foi ali que, com o dinheiro de cada caricatura que eu fazia pros turistas, eu pagava duas noites no hotel!

Ao pensar em Pushkar, também vou me lembrar por um bom tempo das festas de casamento, do maravilhoso nascer do sol visto do alto das montanhas no deserto e do pôr do sol admirado na escadaria à beira do lago sagrado, ao som de tambores e do tabla indiano e em companhia de gente de todos os tipos e todas as partes do mundo.

Quando 86 dias se passaram e a Índia estava prestes a ficar pra trás, um filme como os de Bollywood passou rápido pela minha cabeça mostrando cenas de semanas que seriam decisivas na formação daqueles jovens de 19 e 21 anos num homem e numa mulher.

Com o avião no céu, a imensidão de um dos lugares mais excêntricos do planeta diminuía e diminuía... pra caber pra sempre nos nossos corações.

29 September 2008

Berlim

Todo lugar tem uma cara.

Berlim tem uma meio pálida, enrugada com maquiagem, cabelos com corte dos anos 1960, piercing, uma boca cheia de dentes renovados - alguns postiços, alguns restaurados.

Com expressão mal-humorada, Berlim fica engraçada quando deixa escapar seus sorrisos desajeitados. Tem um sotaque cada vez mais fraco e, quando fala, acaba soltando uma ou outra palavra em inglês, russo, turco, chinês, polonês, farsi, espanhol, italiano e francês. Quando bebe, mistura tudo.

Tem muitas histórias pra contar. Aliás, vive do passado, mas tentando se livrar dele. De qualquer forma, é esse tormento que ela deixa transparecer quando fala e quando se cala.

Quieta, sim; tímida, não. O olhar é sempre pra frente ou pra dentro, mesmo, sem vergonha, entretanto, do contato olho no olho. Mas nada de piscadinha. Ser notado por Berlim exige mais que sua presença. Nada que o tempo não ajude a resolver.

22 February 2008

Sobre o amor

O amor é uma daquelas coisas tidas como patrimônio universal, uma espécie de bem público de que a maioria das pessoas usufrui, mas não possui.

Como acontece com futebol e Big Brother, o amor é um assunto em que cada um de nós se julga experto. Todo mundo dá palpite, todo mundo define, todo mundo julga. E muita gente compete quem ama mais, quem ama melhor, quem merece amar, quem não deveria ser amado, quem nunca vai aprender o que é amar e tantas outras coisas assim que estou de saco cheio de ouvir por aí.

Tudo bobagem!

Dizer que alguém é frio, inconstante, desconhecedor do verdadeiro amor ou indigno deste é fácil.

Dizer sempre é fácil.

Amar não é.

Acredito que alguns tipos de pessoas já nascem com uma certa disposição pra amar, enquanto outros crescem assistindo ao exemplo de quem ama ao seu redor.

Pode ser, entretanto, que muita gente, mesmo, passe a vida inteira sem amar ou sem saber ser amada. E daí? Como se o amor fosse garantia de felicidade... E como se felicidade fosse acumulada e, lá no final da vida, definisse quem teve uma vida melhor ou pior.

Quem ama sabe que não é assim.

Com uma coisa hei de concondar com a maioria: tudo fica mais fácil com a pessoa amada. E, se alguém disser que é o contrário, hei de concordar também.

E terei sempre razão. Ou nunca. Afinal de contas, o amor é assim mesmo, uma confusão só. Quem ama sabe. Quem não ama hoje simplesmente não lembra.

Por mais ponderados que sejamos, no amor, vale tudo. Dedos, línguas, palavrões, surras, algemas, saudades, distância, jóias, brigas, mentiras e verdades doídas, flores, lingeries, maquiagem, economia, carreira, chantagem, seqüestro, aprisionamento...

É a mais pura anarquia do mundo.

E é o amor o nosso calcanhar de Aquiles. Não há dinheiro, santo, armadura ou frieza que nos proteja do direito, da obrigação, da bênção ou da penitência de amar.

Quando o amor bate à porta trazido por uma ladra ordinária, ele entra em casa de uma vez só e, quando amanhece, todos os cômodos estão ocupados e os móveis carregam seu cheiro. De repente, a mais suja das mulheres, a mensageira do amor, conquista nossa atenção, corpo, pensamentos e valores morais cultivados por anos e anos vão parar no lixo. Jogados por nós próprios, mesmo sabendo que ela não “vale a calcinha que veste”.

Isso não é fantástico?

Não há promessas, alianças, juramentos, álbuns, mudanças, contratos, castidades nem ameaças que nos garantam que essa fonte de loucura, prazer e ódio nunca se esgote.

Enquanto quase tudo se compra, se troca e se vende... o amor ainda nos dá a sensação de justiça social. Permanece um patrimônio universal. Usufruído por todos, possuído por ninguém.